Descontraído, despretensioso e com preços acessíveis. Este parece ser o mantra do ConTradição, o gastro bar que os irmãos responsáveis pelo restaurante G abriram na cidadela de Bragança para contrariar a pandemia.
O nome pode ser visto como um jogo de homofonia – ConTradição -, porém, o seu significado até contraria a semântica (se deixarmos a filosofia para trás). Afinal, o ConTradição não é para ser visto como os irmãos Gonçalves (ou Geadas, como são mais conhecidos) a contradizerem-se, é para ser visto como os irmãos a superarem uma contrariedade. A dos tempos estranhos que vivemos (sim, temos de falar de pandemia), que ameaçou “tantos anos de trabalho”.
Não queriam parar, mas tudo parou – “e 90 dias é muito tempo”, sublinha António Gonçalves, o gestor da Pousada G (de São Bartolomeu) que tem no seu coração o G Restaurante, uma estrela Michelin que brilha em Bragança. Tempo (de sobra, veremos) para “construir” um novo espaço, um irmão caçula do estrelado G que não enjeita a genealogia. “A génese é a mesma”, diz Óscar Gonçalves, o chef, “a cozinha contemporânea portuguesa”, mas tem a leveza dos irmãos mais novos – “o conceito aqui é mais desprovido”. “É mais descontraído”, sublinha António (“superdescontraído”, dirá mais à frente) – e é um gastro bar.
“Imagina uma taberna portuguesa com cozinha ao vivo”, descreve António do outro lado do telefone. E com “muitas notas de estilo português”, como a faiança da Bordallo Pinheiro ou uma parede coberta de pratos. Já dissemos que fica na cidadela de Bragança, numa das pequenas vielas de empedrado desirmanado cheias de vasos rente às casas? Parece condizer – e, no entanto, rebela-se: na esplanada, há um mural do artista urbano Pedro Rodrigues.
“Fez uma interpretação giríssima do [Georges] Dussaud”, conta António, “a partir de uma fotografia que retrata um almoço na segada”. Uma longa mesa comunitária onde os segadores se sentam, ombro com ombro: não é à toa, percebemos. “A ideia no ConTradição é a partilha”, dirá António, “mesmo que neste tempo a partilha não seja aconselhada”. Afinal, “sempre que nos sentamos à mesa é com o nosso círculo.”
Para este espaço “completamente despretensioso”, Óscar criou “pratos identitários”, “que respeitam a origem”: “o nosso território, produtos e produtores” – “nesta altura ainda é mais importante”, salienta (e “com mais carvão”, acrescenta António, “nós gostamos muito do fogo e queremos trabalhar mais”). Por isso, na ementa encontram-se desde os cuscos (de Vinhais) de sames de bacalhau (“é um subproduto cada vez mais em uso”, explica, “claro que em zonas piscatórias toda a vida se comeu isso, como aqui no Norte as tripas de vaca”) ou a truta com açorda de erva peixeira (“uma erva que os pescadores usam nas canastras para afugentar as melgas. Em Trás-os-Montes há em quase todos os rios, é uma infestante”).
Não faltam pastéis de massa tenra, lagartos de porco bísaro (“a parte do porco utilizada para fazer salpicão, têm o mesmo adobo e são grelhados”), um Brás de cogumelos e legumes ou as mais prosaicas tábuas de enchidos e queijos. Tudo a preços acessíveis: a maioria dos pratos custam entre 6€ e 12€. Com duas (notáveis) excepções, assinala António: o entrecôte de vaca maturada (300 gr) e os carabineiros – a 27,50€.
Este é um gastro bar muito vocacionado para os locais, assume António, e a piscar o olho aos visitantes diários da cidade, que, invariavelmente, percorrem os caminhos apertados intramuralhas que conduzem ao castelo. “Temos um espaço diferenciado bem no centro e que representa um upgrade sério a nível qualitativo”, considera, “não só à mesa mas no serviço”. Porque, continua, “no fundo, esta é a mesma equipa do Michelin”. Foi, aliás, também a pensar nessa equipa que nasceu o Contradição – agora.
“Estávamos a pensar fazê-lo mais tarde, porque implicava o aumento de recursos humanos”, assume. Porém, e voltamos ao início, no contexto da covid-19 era necessário “manter os recurso humanos actuais, não fazer despedimentos”: “Eles são a base da nossa operação, sem eles não podemos trabalhar”. E “quando ficas sem trabalho, vem a solução.”
Não foi, claro, tão linear. António ficou na pousada sozinho durante o confinamento, numa espécie de “trabalho voluntário”. “Fechámos, mas recebemos trabalhadores da saúde, auxiliares, enfermeiros, médicos”, conta, “e durante esse tempo muitas coisas me passaram pela cabeça”. A “mais pertinente”, prossegue, “era sustentabilizar a marca na retoma” (e o “grupo” G chegou a 1 de Junho com menos 70% das reservas, não só no alojamento como na restauração).
Por isso, quando, quase casualmente, souberam que havia “no castelo” um espaço disponível – coincidentemente, onde até há cerca de cinco anos funcionou o que era um dos mais antigos restaurantes de Bragança, o D. Fernando – foram visitá-lo. “E ficámos com o espaço. Investimos dinheiro nosso para recuperá-lo.” Entre 10 e 30 de Maio criaram “um espaço completamente diferente”.
Resumindo: “A ideia estava cá, não sabíamos onde; tínhamos de fazer, não sabíamos como.” Mas tempos extraordinários pedem medidas extraordinárias: “O que aconteceu foi uma bomba atómica e nós respondemos também com uma bomba atómica.” Com uma grande dose de benignidade e servida de quarta a sexta-feira das 16h à 1h (“até às 23h com comida, depois com copos”) – ao fim-de-semana, acrescenta-se o almoço.